6. Por que a biodiversidade marinha é menor do que a terrestre, já que os oceanos ocupam a maior parte do planeta?
Se a área fosse o principal fator determinante para a diversidade biológica, os oceanos deveriam conter 70% da biodiversidade do planeta. No entanto, de acordo com o estudo mais recente que realizou essa comparação, a diversidade marinha, com menos de 200 mil espécies, corresponde a somente 16% da biodiversidade mundial4. Mesmo que a proporção de espécies ainda desconhecidas seja maior nos oceanos que na terra, como seus autores supõem, a proporção da diversidade marinha aumentaria no máximo para 25%.
Muitos fatores contribuem para essa diferença acentuada. Primeiro, apesar da grande área e profundidade dos oceanos, a penetração da luz é reduzida. Dependendo da turbidez, a fotossíntese pode ser realizada no limite de 20 até 200 metros de profundidade. Além disso, no oceano aberto há limitação de nutrientes necessários à vida dos organismos.
Outra causa importante é a falta de barreiras comuns que impedem a dispersão de organismos na terra, como grandes rios ou cadeias montanhosas. Essas barreiras facilitam o isolamento de populações e sua diferenciação genética. Isso é um importante fator para a evolução de espécies. Com a escassez de barreiras importantes e o transporte a grandes distâncias por correntes marítimas, esses processos são menos atuantes em ambientes marinhos.
Os ambientes costeiros têm diversidade muito maior do que o mar aberto. Em especial, os recifes de coral abrigam uma diversidade notável de espécies de invertebrados e peixes, comparável à dos ambientes terrestres mais biodiversos.
7. Como se pode avaliar a diversidade de bactérias e outros organismos microbianos?
Bactérias, fungos e outros grupos primitivos têm poucas características anatômicas para distinguir espécies. Por muito tempo, sua classificação dependia da possibilidade de cultivar os microrganismos em meios de cultura com diferentes combinações de nutrientes. Isto mudou radicalmente com a adoção de métodos moleculares. Atualmente, microrganismos são identificados quase exclusivamente por meio do sequenciamento de seu DNA ou RNA. Com a facilitação e o barateamento desses métodos, vêm sendo construídas gigantescas bibliotecas de referência para sequências de DNA desses grupos de organismos.
A diversidade de bactérias, fungos, protozoários e outros organismos microbianos não depende mais de individualizar as espécies, caracterizar e nomear cada uma, seguindo os procedimentos usuais da classificação biológica. Hoje, a partir de uma amostra coletada no ambiente, é feita a extração e sequenciamento de todo o DNA ou RNA em conjunto. Esse coquetel molecular é separado, identificando-se as sequências já existentes em bibliotecas de referência. Sequências não identificadas também são separadas em grupamentos moleculares que devem pertencer a espécies diferentes. Assim, é possível estimar o número de “espécies-equivalentes” em uma amostra ambiental; pode-se também aferir a semelhança entre amostras de localidades, regiões ou ambientes diferentes, e assim produzir estimativas para sua diversidade em grandes escalas. As amostras ambientais analisadas até hoje somente permitem comparações preliminares entre biomas e ecossistemas. Extrapolações a partir dos dados existentes chegam ao número assombroso (e discutível) de um trilhão de espécies microbianas.
Devido ao modo radicalmente diferente de medir a diversidade de organismos microbianos, não faz muito sentido combinar essas medidas com os números de espécies de organismos multicelulares. Porém, é importante notar que métodos moleculares são hoje também usados amplamente para diferenciar novas espécies de plantas e animais, e mesmo para reavaliar espécies bem conhecidas. Por exemplo, estudos moleculares recentes levaram diferentes pesquisadores a propor que a girafa, tida como espécie única desde sua descrição em 1758, seja separada em até oito espécies distintas. Parece provável que três espécies venham a ser reconhecidas.
8. Que outros modos, além do número de espécies, devem ser usados para avaliar a biodiversidade?
No início, indicamos que, por uma opção de enfoque, neste texto não examinamos a diversidade genética (em cada espécie) nem a diversidade de ecossistemas e regiões. São modos igualmente importantes de avaliar a biodiversidade e que respondem a outras questões.
A contagem pura e simples de espécies é uma medida indispensável de biodiversidade, mas tem limitações significativas. Antes de mais nada, essa medida dá o mesmo valor (ou peso) a qualquer espécie do grupo que avaliamos. Em uma lista de espécies de aves, o pardal e a arara-azul-de lear (uma das espécies brasileiras endêmicas criticamente ameaçadas de extinção) contribuiriam igualmente para a biodiversidade. Se a avaliação tiver o objetivo de estabelecer prioridades para a conservação de espécies, é necessário introduzir outro critério, no caso, o risco de extinção (ou o valor de conservação) de cada espécie.
Outros dois critérios são importantes e devem ser mencionados. Primeiro, cada espécie tem uma posição na árvore de evolução da vida. Duas espécies podem estar mais próximas ou distantes nessa árvore evolutiva. A diversidade filogenética agrega essas distâncias ao número simples de espécies, sendo maior quanto maior for a separação evolutiva entre as espécies. Como exemplo, no Equador, as comunidades de beija-flores que vivem em florestas tropicais de baixa altitude têm maior diversidade filogenética que as comunidades que vivem nas partes mais elevadas dos Andes. A diversidade filogenética é um elemento importante para estratégias de conservação da biodiversidade. Ela também é importante para avaliarmos o capital natural de um país, pois indica o estoque de variabilidade genética e evolutiva, de onde podem surgir novos fármacos ou genes de resistência para pragas agrícolas, por exemplo.
A diversidade funcional representa a variedade de características, em um grupo de espécies, que influenciam, entre outros, a manutenção de ecossistemas e sua capacidade de responder a alterações ambientais. Características funcionais de plantas incluem, por exemplo, a capacidade de se recuperar após secas ou incêndios. Uma comunidade funcionalmente diversa de plantas reúne espécies com adaptações fisiológicas e reprodutivas distintas. A diversidade funcional é essencial para avaliar a eficiência de ecossistemas em prover serviços ambientais, e sua capacidade de adaptação a mudanças climáticas. Embora a diversidade de espécies, a diversidade filogenética e a diversidade funcional sejam inter-relacionadas, elas variam independentemente, medem aspectos distintos da biodiversidade e respondem a perguntas diferentes.
Para terminar, é importante desfazer a impressão, também bastante difundida, de que a biodiversidade só diz respeito a ambientes e ecossistemas naturais em que a influência humana é reduzida. Pelo contrário, todos os conceitos e medidas se aplicam igualmente a ambientes modificados pela ocupação e pelas atividades humanas, incluindo ecossistemas urbanos ou agrários, até os mais degradados. Mais que isso, o conceito ampliado de biodiversidade hoje abrange culturas humanas e todo seu leque de conhecimento e usos da diversidade natural.
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Créditos
Texto originalmente publicado no Jornal Nexo em 03/jul/2020
Foto da capa: Lucas Perillo
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