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O papel da epigenética em doença humana, biologia, desigualdades sociais e relógio epigenético
Por: Edson Coelho de Moraes                                                          Postado dia 14/12/2020Professor aposentado de genética médica (UFMG)
Cirurgião geral









Não tenha medo de opiniões excêntricas, pois todas as opiniões
hoje aceitas foram um dia consideradas excêntricas.
Bertrand Russel
A importância da Epigenética chegou a ser negada, pouco tempo atrás, como existindo apenas em seus 15 minutos de notoriedade e que seria muito breve relegada ao esquecimento. Talvez o autor desta afirmação estivesse pensando na ausência de importância da Epigenética no processo de evolução das espécies. Não entrarei nesta discussão, pois a discussão sobre a importância da Epigenética na Evolução deixo a cargo dos Biólogos Evolucionistas. Em ciência, afirmações como esta, negando a importância da Epigenética para a Evolução, são frequentes entre aqueles que não querem mudar seus pontos de vista estabelecidos e ser obrigados a repensar sobre a natureza dos fenômenos biológicos diante da mudança de paradigmas.

Comento um pouco sobre a importância da epigenética na Evolução Humana, pois epigenética pode alterar a expressão de genes. A influência epigenética sobre a expressão gênica possivelmente se originou como uma defesa contra os transposons, o DNA parasita que se insere no genoma e pode interromper a expressão de genes. Silenciar a ação desses elementos transponíveis e prevenir ou limitar os danos que podem causar ao genoma forneceu vantagem importante para os organismos das primeiras espécies que desenvolveram este mecanismo. Eventualmente, esse processo evoluiu para um método de promoção e repressão de genes hospedeiros que não só poderia ser adquirido ao longo da vida de um indivíduo, mas também transmitido à sua prole. É uma hipótese de trabalho interessante para pesquisadores trabalhando sobre o tema.

Quanto a importância da Epigenética para o conhecimento nas áreas das ciências ligadas à saúde humana (Medicina, Odontologia, Farmácia e Bioquímica, Enfermagem, Biomedicina, Fisioterapia, Psicologia) não existe dúvida sobre necessidade de todo profissional dessas áreas ter conhecimentos profundos e atualizados sobre o assunto. Não só nestas áreas ligadas à saúde humana, mas para todos que trabalham nas áreas das ciências biológicas.

Quando inicie minha formação médica na FM-UFMG, em 1970, pouco se falava para os alunos sobre a importância do conhecimento em Genética e Evolução. A Genética Médica era observada por muitos como uma curiosidade para aquelas síndromes raras e com poucas possibilidades de tratamento. Muitos dos nossos mestres falavam com muita frequência que não devíamos tratar os sintomas, devíamos fazer o diagnóstico preciso para iniciar o tratamento. Era como se um diagnóstico preciso fosse capaz de resolver todo o problema. Mesmo com um diagnóstico preciso, continuávamos a tratar apenas os sintomas. A alteração básica da maioria das patologias continuava um enigma.

Como monitor da disciplina Genética e Evolução oferecida no Departamento de Biologia Geral do ICB pude enxergar a importância da Genética e da Evolução para a formação de um médico. Após formado, lecionei durante 35 anos a disciplina no mesmo Departamento. Durante esse tempo, tive oportunidade de conviver com outros professores fora da área médica, biólogos com formação em História Natural, Veterinários e Farmacêuticos. Afastei-me da ideia antropocentrista que sempre dominou o pensamento médico graças a influência destes profissionais com os quais convivi.

Sempre considerei livros atualizados na ciência médica, aqueles que traziam um enfoque sobre Genética e Evolução. Livros sem tais conhecimentos estavam ultrapassados. Falo isto porque, certa vez (e não faz muito tempo) explicando sobre a origem evolutiva/genética de uma anomalia, com indicação para abordagem cirúrgica, na Associação Médica de Minas Gerais, fui interrompido por um colega cirurgião falando que aquilo não interessava. A Genética e Evolução seriam “muito teóricas e não contribuíam com nada.” Informei ao colega aquilo que citei no início deste parágrafo: livros sem abordar Evolução e Genética eram antiquados e ultrapassados.

Por problemas religiosos, existem alunos da área médica (e médicos também) que rejeitam a Evolução. É inadmissível tal conduta. O conhecimento sobre muitas patologias e sobre certos comportamentos humanos passa necessariamente pelo entendimento pleno da Evolução. A anatomia cirúrgica da tireoide e o nervo laríngeo recorrente; cistos branquiais; cisto sacrococcígeo ou cisto pilonidal; persistência do apêndice cecal; postura bípede, estreitamento do canal de parto e cesarianas; o problema das hérnias inguinais e outras tantas alterações passíveis de correção cirúrgica ou clínica exigem conhecimento de Evolução em sua origem. Tanto quanto entender que alguns sintomas são mecanismos de defesa evoluídos e não doenças, por exemplo, febre, dor, diarreia, vômitos e vômitos do primeiro trimestre da gravidez e quadros depressivos.

E sobre o dito racismo? Que falta faz um bom estudo e aplicação dos princípios evolutivos. E sobre nossas origens? Somos somente uma espécie e não existem raças. Todos Homo sapiens sapiens são afro-descentes. A evolução por seleção natural está na nossa pele com disse Nina Jablonski (ver excelente apresentação de Nina Jablonski disponível em TED 2009).

Em certa lista de meus alunos matriculados em Genética e Evolução afixada na porta da sala de aula apareceu escrito que as aulas sobre Evolução seriam as trevas. Uma acusação contra a Evolução como sendo uma escuridão total, ausência de luz. Não há o que comentar sobre tal demonstração de ignorância, seja por que motivo fosse, partindo provavelmente de um(a) estudante de Medicina.

Se a ideia de seleção natural de Darwin é verdadeira e de tão fácil compreensão, mas muitos por dogmas religiosos não a aceitam, como fazê-los entender sobre a importância da Genética e da Epigenética? A identificação da dupla hélice de DNA por James Watson/Francis Crick/Rosalind Franklin/Maurice Wilkins (1953) e o dogma central de Biologia, DNA-RNA-Proteína por Francis Crick (1958) há décadas se fizeram estabelecidos, mas muito ainda restava para ser entendido. Com o sequenciamento dos 3 bilhões de pares do genoma através do Projeto Genoma Humano, há 20 anos, veio a expectativa de que muitas das características humanas, doenças e comportamentos seriam facilmente identificados. Na sequência de bases nitrogenadas estaria a “receita” de todo ser humano, mas nada se mostrou tão frustrante.

O ambiente comportamental, fisiológico e social de um organismo influencia e é influenciado pelo epigenoma, que é composto de forma predominante de cromatina e a modificação covalente do DNA pela metilação. Os padrões epigenéticos são esculpidos durante o desenvolvimento para moldar a diversidade de programas de expressão gênica no organismo. Em contraste com a sequência de bases nitrogenadas (sequência genética), que é determinada por herança e é praticamente idêntica em todos os tecidos, o padrão epigenético varia de tipo celular para tipo celular e é potencialmente dinâmico (reversível) ao longo da vida. Diferentes exposições ambientais, incluindo o cuidado precoce dos pais, pode afetar os padrões epigenéticos, com implicações importantes para a saúde mental em seres humanos. Como a programação epigenética define o estado de expressão dos genes, as diferenças epigenéticas podem ter as mesmas consequências que os polimorfismos genéticos. No entanto, em contraste com as diferenças de sequências genéticas, as alterações epigenéticas são potencialmente reversíveis.

Por muito tempo, os cientistas tentaram descrever os transtornos apenas por meio de fatores genéticos (fundamentados apenas nas sequências de bases do genoma ou ambientais). No entanto, o papel da Epigenética nas doenças humanas tem sido considerado há meio século. Na última década, esse assunto atraiu muito interesse, especialmente tratando-se de transtornos complicados, como plasticidade de comportamento, memória, câncer, doenças autoimunes, dependência a drogas, bem como transtornos neurodegenerativos e psicológicos. Parafraseando Thomas Henry Huxley, destacado biólogo britânico e conhecido como o “buldogue de Darwin”, como nós geneticistas não pensamos nisso antes? Usávamos a Epigenética principalmente para explicar a regulação da inativação do cromossomo X através de metilação (conhecido como Hipótese de Lyon) e síndromes de Prader-Willi, Angelman, Beckwith-Weidmann, Silver-Russell, entre outras síndromes. Muito pouco uso e muitas perguntas permaneciam sem respostas.



Abordagem do problema.

A flexibilidade apresentada pelo epigenoma humano e sua interação com o ambiente interno e externo (nature/nurture) na gênese dos fenótipos, seja para doenças em geral, alterações comportamentais, formação de tumores, doenças degenerativas que acompanham o envelhecimento, gerou um argumento atraente para explorar sua reversão por meio de tratamentos farmacológicos (epi-fármacos) como uma estratégia para melhorar/curar os fenótipos das doenças.

Como passar o conhecimento em Epigenética para profissionais da área médica formados anteriores a 2010? Em uma das últimas edições das Bases Farmacológicas da Terapêuticas de Goodman e Gilman de 2012, não existe uma única linha sobre Epigenética. Lembrando que este manual era o livro de cabeceira sobre farmacologia de todo estudante desde minha época na formação médica. O Medicina Interna de Harrison, 20º edição de 2020, em um capítulo sobre “Avanços da medicina, antecipando aspectos inovadores da ciência que mudarão a prática médica no futuro próximo” focaliza sobre doenças de telômeros e o papel da epigenética na doença e no tratamento em um único capítulo. As abordagens em todos outros capítulos não a levam em consideração. Todos os capítulos deveriam ser reescritos e isto não acontece. Estão ultrapassados. E no Cecil, Tratado de Medicina Interna? Em sua 25ª edição de 2020, o enfoque é todo sobre o genoma e não aborda o epigenoma. Todo o livro deveria ser reescrito. O Conn’s Current Therapy 2019 apresenta o mesmo problema.

São bons livros, mas estão ultrapassados em seus conteúdos. Exige-se muito sacrifício reescrever e atualizar as mais de 2.000 páginas em cada um desses quatro livros muito adotados nas Faculdades de Medicina. Revisão rigorosa torna-se necessária. Sem nenhum exagero, é como tratar infecções com informações de livros escritos antes do advento da terapia com antibióticos. A etiologia de todas doenças passa pelo conhecimento da Epigenética. Parece que quando falamos sobre Epigenética estamos tratando de ideias excêntricas e sem importância. É preciso acordar estes profissionais que a ignoram no exercício de suas profissões.

Existem livros dentro de cada especialidade que abordam a Epigenética de forma bem atualizada: Dermatologia, Neurologia, Oftalmologia, Gastroenterologia, Psiquiatria, Pneumologia, Nefrologia, Urologia, Cardiologia, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Nutrição, Ortopedia, Cancerologia e qualquer outra especialidade e subespecialidade. Sem a abordagem Epigenética certamente estariam ultrapassados.

Sem alterar diretamente a sequência de DNA, os sinais epigenéticos, como modificações de histonas, metilação de DNA e interferência de RNA podem ser específicos para condições particulares internas ou externas. Podem ter implicações fenotípicas. Com os recentes avanços na biologia celular, percebeu-se que modificações no DNA e nas histonas podem ter um profundo impacto na transcrição e na função. Essas modificações, comumente referidas como alterações “epigenéticas”, mudaram a forma como entendemos o comportamento, a reprogramação e a diferenciação das células e proporcionaram uma percepção significativa dos mecanismos subjacentes às doenças. As alterações epigenéticas, até este ponto, são amplamente identificadas por alterações na metilação e hidroximetilação do DNA, assim como na metilação, acetilação e fosforilação das caudas das histonas. Essas modificações permitem uma flexibilidade significativa na expressão gênica, em vez de apenas transformar os genes “ligados (ON)” ou “desligados (OFF)”. Proteínas podem ser produzidas em maior ou menor quantidade ou até mesmo não serem produzidas.

Na carcinogênese, lembrando que a origem da neoplasia é monoclonal, vários estágios são necessários para atingir a plena malignidade (metástases). Um exemplo típico é o câncer do intestino grosso (formação dos pólipos) com uma célula adquirindo o poder da hiperplasia (proliferação), em seguida e neste aglomerado uma destas células apresenta displasia (sempre proliferando), em seguida caráter invasivo e com o crescimento do tumor, estas células tumorais podem proliferar à distância (metástases). Poucas neoplasias malignas são herdadas de maneira monogênica de ocorrência familiar ou mutação nova com alteração de base nitrogenada do DNA, aproximadamente 2% (retinoblastoma, câncer de mama por BRCA1 ou BRCA2, adenocarcinoma do colon (Síndrome de Linch), Xeroderma pigmentoso entre outros). Para restantes neoplasias malignas podem existir componentes familiares, mas geralmente são por alteração epigenéticas.

A Epigenética tem o potencial para explicar vários fenômenos biológicos que até aqui têm desafiado completa explicação. Os vários tipos de desenvolvimentos endógenos humanos marcantes tais como nascimento, puberdade, menopausa, e envelhecimento, assim como os diversos fatores exógenos ambientais que influenciam a saúde humana, estão em um contexto epigenético cronológico. O inteiro curso da vida humana da preconcepção até a morte se passa observando cronologicamente todos potenciais fatores internos e externos que influenciam o epigenoma humano. O ambiente externo e interno apresenta vários fatores que influenciam o epigenoma, a singularidade epigenética, e o perfil genético de cada indivíduo também modula a resposta específica para estes fatores. Durante o curso da vida humana somos expostos a ambientes que são meios potentes, dinâmicos e capazes de disparar mudanças químicas que ativam ou silenciam a expressão de genes. Há constante interação entre os ambientes externos e internos que são necessários para o desenvolvimento normal e manutenção da saúde, assim como para influenciar carga de doença e resistência. Por exemplo, exposição a drogas farmacêuticas ou tóxicas (excesso de bebida alcoólica, tabaco, maconha, cocaína), dieta, estresse, exercício, e outros fatores ambientais são capazes de evocar modificações epigenéticas positivas ou negativas com efeitos duradouros sobre desenvolvimento, metabolismo e saúde. Estes podem influenciar o corpo tão profundamente assim como permanentemente alterar o perfil epigenético de um indivíduo.

Poucos profissionais observam que grande parte dos fármacos efetivos usados atualmente na clínica têm foco sobre as alterações epigenéticas das patologias. Mudanças epigenéticas como a metilação do DNA e a metilação das histonas e acetilação alteram a expressão gênica no nível da transcrição por regulação positiva, regulação negativa ou silenciamento completo dos genes. A desregulação de eventos epigenéticos pode ser patológica, levando a doenças cardiovasculares, distúrbios neurológicos, distúrbios metabólicos e desenvolvimento de câncer. Portanto, a identificação de drogas que inibem essas alterações epigenéticas é de grande interesse clínico.

E a importância da Epigenética sobre o aspecto social? Estudos populacionais recentes de associações entre status sócio-econômicos e marcadores epigenéticos que predizem vulnerabilidade a doenças estão trazendo à luz efeitos biológicos substanciais de desigualdades sociais e as consequências morais destes achados. Fenômenos epigenéticos são muito responsivos a mudanças ambientais e várias características epigenéticas são estabelecidas precocemente durante o desenvolvimento, e seus efeitos sobre a saúde seguem através do curso da vida. Além disso, evidências de estudos epidemiológicos indicam que características epigenéticas podem ser herdadas de forma transgeracional. Formas de desvantagens transmitidas epigeneticamente dizem mais respeito à responsabilidade política que individual. O conhecimento das descobertas sobre a biologia de circunstâncias no início da vida e condições psicológicas pode abrir novos rumos políticos para atacar estas desvantagens. Nossos administradores nos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) deveriam ter consciência disso, e se têm, por que não enfrentam um problema tão grave abrindo mão de muitos privilégios a favor de usar os recursos públicos para efetuar a verdadeira justiça social?

Por último, mas não menos importante, pesquisadores em epigenética desenvolveram testes que podem prever as idades cronológica e a biológica de indivíduos com base nos níveis de metilação do DNA (relógios epigenéticos). Relógios epigenéticos são promissores para o melhor entendimento das vias biológicas subjacentes ao desenvolvimento de distúrbios associados ao envelhecimento e propor intervenções biomédicas e sociais para prevenir, reverter ou aliviar tais distúrbios. A idade biológica (epigenética} de diferentes tipos celulares permite oportunidade de investigar como estressores ambientais, adversidade social e estilos de vida pouco saudáveis podem contribuir para transtornos por meio de aceleração do envelhecimento epigenético. Também devemos pensar nas implicações éticas, legais e sociais dos usos não médicos de relógios epigenéticos, nos casos da administração de seguros de saúde e fundos de pensão, proteção da privacidade, princípios de equidade e não discriminação, validação científica, precisão do teste e interpretação de resultados.