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Autores do Blog Ciência em Ação

Por: Lucas Neves Perillo
Postado dia 29/01/2021

Biólogo, doutor em Ecologia e Conservação. Residente pós-doutoral do mesmo programa. Diretor e co-fundador da Bocaina, realiza o curso de Especialização em Comunicação Pública da Ciência da UFMG - Amerek.















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Nos dias de hoje, concluir um curso de graduação não é o suficiente para conquistar um espaço no mercado de trabalho. Em um cenário cada vez mais competitivo, a pós-graduação deixou muitas vezes de ser um diferencial e se tornou um pré-requisito para conquistar um emprego de qualidade, sobretudo em áreas como a biologia. O perfil do pós-graduando mudou muito nos últimos anos, tanto pela necessidade cada vez mais presente quanto pela facilitação do ingresso e a maior oferta de bolsas para estudantes da pós. Antigamente, quem ingressava no mestrado e especialmente no doutorado eram aqueles estudantes que tinham o desejo consolidado de ser um pesquisador e um professor do ensino superior. Na sua maioria, acredito eu, já tinham em mente seguir a carreira acadêmica.

Apesar das inúmeras mudanças no perfil dos alunos e na produção científica, ainda vemos em muitos cursos de pós-graduação do Brasil uma receita um tanto quanto ultrapassada. A desconexão com a demanda atual por profissionais capacitados fora da academia pode aparecer na recepção dos estudantes. Frases como: “essa escolha é pra poucos”, “você já entra aqui devendo”, “não pense que vai ser fácil”, ... são proferidas com naturalidade por coordenadores, professores e até alunos que já carregam essa perspectiva consolidada na mente, normalizando a prática como se o sofrimento fosse intrínseco de todo o processo. Um momento que deveria ser marcado pelo acolhimento e pelas boas-vindas aos futuros pesquisadores pode transformar a excitação pela conquista do ingresso na pós em uma angustia, uma dúvida que se torna cada vez mais persistente na jornada: “será que este lugar realmente é pra mim?”.

A vida na academia já é naturalmente difícil. Convivemos diariamente com mais frustrações do que sucessos. Para reunirmos resultados importantes, muita coisa normalmente é descartada e mergulhamos em uma maratona de incertezas. Mesmo depois dos trabalhos serem escritos e revisados incessantemente pelos autores, um artigo científico para ser publicado, na maioria das vezes, ainda precisa passar por várias rodadas de discussão com os revisores da revista. E quando um artigo é publicado, apesar do alívio imediato dos autores, é o momento no qual suas ideias e achados são divulgados pela primeira vez para a comunidade científica. A publicação é o começo e não o fim do conflito de ideias. Antigamente, quando os primeiros periódicos científicos começaram a ser publicados, o mundo era muito diferente. Demorava o tempo do cavalo ou do navio para as novidades chegarem. Hoje, lidamos com debates até mesmo antes da publicação, com a divulgação dos proofs (a revista já divulga o seu artigo online antes da versão finalizada) e mais recentemente dos preprints (um manuscrito que é compartilhado publicamente antes de ser revisado por pares). Mas calma! Todo este processo é saudável, já que a ciência é forjada pelo confronto de ideias. Este processo é até hoje a melhor receita para alcançarmos novas descobertas e expandirmos as fronteiras do conhecimento. Mas essa legítima necessidade de críticas constantes às hipóteses e argumentos é, todavia, mal interpretada e acaba sendo usada em outras instâncias do ambiente acadêmico sem nenhum sentido.

A ênfase no possível insucesso diz muito sobre o sistema que mantemos. A maioria dos programas foca sobretudo no preparo de seus alunos para se tornarem pesquisadores, insistem que a carreira acadêmica é o melhor (as vezes o único!) caminho. O mérito está enraizado nessa premissa. Se o aluno não focar nas publicações, seu mestrado/ doutorado não cumpre o propósito. Se não se tornar um professor universitário, sua caminhada vira sinônimo de insucesso. Mas um importante detalhe é negligenciado nessa história: o mercado da academia não consegue (e nem deve) absorver todos os mestres e doutores. Ainda mais nos tempos que vivemos no Brasil, com cortes absurdos nos recursos destinados às instituições de ensino e pesquisa. Uma redução drástica na oferta de novas vagas para concursos limita o acesso daqueles que querem seguir a carreira acadêmica. Mas o mais importante ao meu ver é a real necessidade de termos profissionais qualificados assumindo cargos de liderança em outros setores. Precisamos de profissionais com experiência acadêmica para resolver demandas informadas pelo conhecimento técnico-científico de qualidade.


A síndrome do impostor

No ambiente acadêmico, os alunos sentem que não são dignos do trabalho. Frequentemente experimentam uma sensação de menos-valia, um tipo de sentimento autodepreciativo, que vai desde uma pequena sensação de inferioridade até profundos sentimentos de incompetência. Este sentimento é classificado como a síndrome do impostor (Figura 1). Independente do quanto nos esforçamos, o sentimento de que falta alguma coisa está sempre presente, martelando nosso subconsciente. Fazer uma simples pausa se torna um trabalho árduo, acompanhado de uma cobrança constante.

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Como exemplo, conversei durante a escrita do texto com um aluno que fez mestrado em Ecologia e ele me confidenciou que dificilmente fará um doutorado. Apesar de já ter saído empregado da pós-graduação, disse que só agora (dois anos depois de sua defesa) está conseguindo se recuperar. “Escutei tantas vezes que só existem pessoas mais inteligentes e espertas que você que desenvolvi uma dificuldade de me considerar capaz de realizar minhas tarefas”. Ele acha que a promoção da menos-valia na universidade é a raiz de muitos problemas ao longo da formação do curso de Biologia. “Os professores fazem questão de afirmar que não sabemos das coisas. Este comportamento desencadeia uma destruição da sua autoestima, gera uma síndrome do impostor generalizada entre os alunos”.

Em 2019, uma pesquisa foi conduzida pela representação discente do programa de Pós-graduação em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre da UFMG, um dos mais tradicionais cursos de ecologia do país. O objetivo foi identificar as dificuldades que os alunos têm enfrentado em suas jornadas acadêmicas, além de avaliar o estado de saúde mental dos estudantes da Pós-graduação. Segundo a pesquisa, a pós proporciona sim momentos de felicidade e conquistas aos alunos, mas que muitas vezes são sobrepostos pelas inúmeras dificuldades, angústias e dúvidas do processo. Uma sensação de desmerecimento do projeto é frequente. Os alunos relataram que a falta de apoio psicológico é a principal dificuldade enfrentada (Figura 2). Ansiedade (mais de 80% dos alunos), angústia e dificuldade de dormir são os sintomas mais presentes (Figura 3).

gráfico com 51% dos alunos apontando falta de apoio pscicológico como principal dificuldade enfrentada

Figura 2: Dificuldades mais enfrentadas por alunos de pós-graduação em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre da UFMG (pesquisa realizada em 2019).

gráfico mostrando 80% de alunos com ansiedade e 62 com angústia

Figura 3: Principais sintomas manifestados nos alunos de pós-graduação em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre da UFMG (pesquisa realizada em 2019).

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A tendência é global. Uma pesquisa realizada com mais de 2.200 entrevistados (Evans et al. 2018) demostrou uma alta prevalência de ansiedade e depressão em estudantes de pós-graduação. Em uma amostra diversificada de estudantes (26 países e 234 instituições diferentes), os sinais de esgotamento (burnout - Síndrome do Esgotamento Profissional) eram comuns. Quarenta e cinco por cento dos entrevistados disseram que frequentemente ou sempre sentiram que não conseguiriam acompanhar as demandas do trabalho (Figura 4). Mesmo com jornadas que superam as tradicionais 8 horas diárias, o sentimento de culpa por não trabalhar "o suficiente" é frequente. O medo de não obter estabilidade ou os julgamentos dos colegas são apenas algumas das principais preocupações enfrentadas por aqueles que sofrem de transtornos mentais na academia. Os autores ainda concluem que as taxas surpreendentemente altas de ansiedade e depressão indicam que uma intervenção para estabelecer e / ou expandir os recursos de saúde mental e desenvolvimento de carreira é urgente e necessário para estudantes de pós-graduação. O equilíbrio entre vida profissional e pessoal não prejudica pesquisas de excelência e deve ser enxergada com parte integrante dela. Lutar contra a norma acadêmica de excesso de trabalho, se desapegar por um tempo e experimentar atividades diferentes pode parecer longe da realidade do pós-graduando. Mas vale a pena ser feito.

Quatro gráficos sobre prevalência de ansiedade e depressão na população de alunos de pós-graduação. (a) Prevalência geral: ansiedade (41%) e depressão (39%). (b) Prevalência de ansiedade e depressão maior em transgênero, depois mulheres e homens. (c) Efeito do equilíbrio entre trabalho e vida pessoal com maioria não sadio. (d) Efeito do relacionamento com o orientador em relação à anxiendade e depressão)

Figura 4: A prevalência de ansiedade e depressão na população de alunos de pós-graduação. (a) Prevalência geral. (b) Prevalência de ansiedade e depressão por gênero. (c) Efeito do equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. (d) Efeito do relacionamento com o orientador. Imagem e dados retirados do artigo Evans et al. 2018.

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A jornada do herói

Martírios e provações são naturalizados durante a caminhada do pós-graduando. Esta prática remete à Jornada do Herói (Figura 5), na qual o personagem deve passar por transformações sequenciais para finalmente se tornar um herói. Esta receita, descrita no livro “O Herói de Mil Faces”, do antropólogo estadunidense Joseph Campbell, é utilizada em diversas sociedades mundo afora para a construção das lendas, mitos religiosos e fábulas antigas. Roteiros de vários filmes de sucesso também bebem da técnica. George Lucas aplicou a jornada nos roteiros da saga Star Wars e agradeceu publicamente ao autor do livro pelos relevantes insights. O intrépido Frodo Bolseiro é a personificação do herói de Campbell. Para o storytelling, é uma tática que aproxima os roteiristas do sucesso. Mas e na academia?

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Alguns professores se preocupam demais em deixar o caminho do pós-graduando mais árduo. Afinal, ele passou por todas as provações possíveis e triunfou! Completou a jornada obrigatória e se transformou em um herói completo! Mas será que nesse caminho não faltou algumas provações? Será que a superprodução cinematográfica que narra sua ascensão acadêmica não é excessivamente fantasiosa? Todos tiveram falta de recursos financeiros durante sua longa jornada de estudos? Passaram pela provação real que é criar um filho? Cada pessoa tem uma história de vida e a tal meritocracia não é suficiente para dizer quem chega nos altos cargos acadêmicos.

O uso da Jornada do Herói para representar nossa jornada acadêmica só aumenta o abismo entre o pesquisador em formação e o professor “já consagrado”. Aqueles que julgam que já alcançaram o topo, a faixa preta, estão só enfatizando a metáfora do cientista na torre de marfim. Reforçam a ilusão de que são mais importantes do que outros profissionais da nossa sociedade. É inegável a importância dos pesquisadores! Mas se a universidade parar por um mês, poucos sentirão tanta falta quanto se os lixeiros pararem por um tempo similar. Isso sem contar as diversas funções, tão importantes quanto, que podem ser executadas por doutores e mestres fora da academia. Um profissional qualificado é importante em qualquer setor. O que não é inteligente é insistir no “doutor desempregado”, categoria que mais angaria candidatos.

O professor concursado, chefe de laboratório, está longe de ser o clássico herói. Claro que não quero dizer que alguns realmente não alcançaram um posto merecido de referência (mesmo que subjetivo), ainda mais se considerarmos como é difícil fazer ciência no Brasil. Mas, quanto mais se enfatizamos que essa jornada de aprendizado deve ser trágica, incluíndo mais provações do que o aprendizado exige, mais teremos desistências no caminho e mais nos aproximaremos de um cenário no qual o pesquisador em formação está insatisfeito com o trabalho.

O texto não é, de maneira nenhuma, uma crítica direcionada à classe dos professores. Inclusive, muitos dos sintomas negativos para a saúde mental também estão presentes na classe. Ainda, no Brasil, o pesquisador assume muitas funções (veja o vídeo abaixo) e também são vítimas de um sistema perverso de avaliação e legitimação de comportamentos. E o que seríamos sem os professores?! Tive muitos mestres que foram e têm sido muito importantes para minha formação pessoal e profissional e ainda vejo a carreira acadêmica como uma oportunidade bem bonita de seguir. O cenário tem sim evoluído, mesmo que às vezes à passos de formiga, e algumas iniciativas, como a inclusão do período de licença-maternidade no currículo Lattes e uma maior abertura de espaços de discussão do problema nos programas, tem aparecido. Ainda vejo o sistema de cotas como um acelerador dessas mudanças, já que o convívio de diferentes realidades é uma enorme potência para a criação de pontes, de novas maneiras de lidar com os problemas da academia. Quando estes alunos começarem a alcançar cargos de liderança, será uma possibilidade de quebra destes paradigmas de dentro para fora.

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Vídeo produzido pela Bocaina em parceria com o prof. Fernando Silveira da UFMG

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Este texto foi produzido como atividade da disciplina de Introdução aos Blogs do curso de Especialização em Comunicação Pública da Ciência da UFMG, o @amerek_ufmg , ministrada pelo professor Roberto Takata.

Foto da capa: https://www.romerolab.com.br/

Mais sobre o autor:

Link para curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/9100354010857966
Link para LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/lucas-perillo-5889414b/
Instagram: @lucasnperillo
e-mail: [email protected]
Referências:Jornada do Herói: https://rockcontent.com/br/talent-blog/jornada-do-heroi/

Síndrome do impostor: https://www.medicina.ufmg.br/sera-que-sou-uma-fraude-conheca-a-sindrome-do-impostor/

Woolston C.2021. How burnout and imposter syndrome blight scientific careers. Nature 599, 703-705 doi: https://doi.org/10.1038/d41586-021-03042-z

Evans T., Bira L., Gastelum JB, Weiss LT, Vanderford NL. 2018. Evidence for a mental health crisis in graduate education. 36 (3) NATURE BIOTECHNOLOGY https://www.nature.com/articles/nbt.4089

Mattias Björnmalm https://www.sciencemag.org/careers/2019/04/academia-hard-work-expected-taking-break-effort-well-spent-too?fbclid=IwAR1p8dUDh3LDPz8DhkzKxQKKwIchKNb7eJrqrGa4T08ap64_hpaTtJBKGl4

https://www.theguardian.com/education/2021/feb/16/mental-health-more-support-needed-for-postgraduate-students

Gewin V. 2021. Pandemic burnout is rampant in academia. Nature 591, 489-491.
https://doi.org/10.1038/d41586-021-00663-2

Bravata et al. 2020 Prevalence, Predictors, and Treatment of Impostor Syndrome- a Systematic Review

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