Postado dia 15/01/2022
Os térmitas (ou cupins) são animais eussociais que apresentam uma refinada organização, caracterizada pela sobreposição de gerações, divisão de tarefas (procura de alimento, proteção e reprodução), e cuidado parental (Noirot & Darlington, 2000; Bezerra-Gusmão, 2008). Estas atividades ocorrem de forma sistemática e cooperativamente entre os integrantes da colônia (ou sociedade), onde indivíduos morfologicamente diferenciados, se dividem em castas, dentre elas os operários que são responsáveis pelo forrageio, manutenção do ninho, além de alimentação das castas dependentes; os soldados, aqueles especializados na defesa da colônia (e em algumas espécies auxiliam ativamente na busca e exploração de novas fontes alimentares), que podem possuir mandíbulas bem desenvolvidas (defesa mecânica), estruturas na glândula frontal que liberam substâncias que repelem invasores (defesa química), ou uma combinação dessas (defesa mista) (Prestwich, 1984; Sacramento et al., 2020).
São insetos que se alimentam de matéria orgânica (principalmente celulose), desempenhando um importante papel funcional nos ecossistemas, devido à capacidade de provocarem mudanças físicas em materiais bióticos e abióticos (agregando nutrientes, excrementos, saliva e removendo partículas do solo), também são chamados de "engenheiros do ecossistema” (Bezerra-Gusmão, 2008; Bezerra-Gusmão et al., 2013).
Apesar de pequenos (a maioria das espécies não chega a 1 cm de comprimento), os cupins são responsáveis por construírem as maiores e mais complexas estruturas físicas, as quais comumente chamamos de ninhos (nem todas as espécies de cupins constroem seus ninhos) (Martius, 2001), estes variam desde arborícolas (ninhos construídos sobre árvores) até grandes colônias que podem se estender por mais de 230 mil quilômetros quadrados (o equivalente à área da Grã-Bretanha!) (Martin et al., 2018). O mais interessante, é que estes ninhos apresentam microambientes sofisticados, contando com o controle das condições abióticas internas, isto é, temperatura, umidade e luminosidade (Kistner, 1969; Noirot & Darlington, 2000).
Dessa forma, os ninhos de cupins são um ótimo exemplo de abrigo ambientalmente estável, o que acaba por atrair indivíduos de outras espécies (Cunha & Brandão, 2000). Besouros, formigas, moscas e até outras espécies de cupins, são exemplos de insetos que se aproveitam dessa estrutura física e das vantagens de se viver uma vida em sociedade (Seevers, 1957; Kistner, 1969; Cristaldo et al., 2012; Oliveira et al., 2018; Pires-Silva et al., 2022). Até alguns indivíduos do Periquito-da-caatinga (Eupsittula cactorum) já foram flagrados utilizando da estrutura do ninho de Constrictotermes cypghergaster como abrigo (Vasconcelos et al., 2015).
A termitofilia em Staphylinidae
É aí que entram os protagonistas da nossa história: os chamados termitófilos! São animais que possuem algum tipo associação com cupins, mas em termos científicos, refere-se aqueles animais que vivem pelo menos um estágio de sua vida em meio a sociedade dos cupins (Kistner, 1969). Como mencionado pelo célebre entomólogo Edward O. Wilson, os termitófilos são alguns dos animais capazes de quebrar o código de segurança dos cupins (Wilson, 1992) (guarde bem essa informação!).
A termitofilia surgiu em diversos grupos taxonômicos, no entanto, é na família Staphylinidae que esse fenômeno é melhor observado (Seevers, 1957; Kistner, 1969; Cristaldo et al., 2012). Essa família corresponde a maior família de besouros, com mais de 63 mil espécies conhecidas e distribuídas por todo o mundo (Betz et al. 2018). E dentro de Staphylinidae, é na subfamília Aleocharinae onde a termitofilia foi ainda mais seletiva (Kanao et al., 2016). Nela, esse fenômeno surgiu cerca de 11 vezes de forma independente (Jacobson et al., 1986; Kanao et al., 2016; Rosa et al., 2018). Aleocharinae também não fica atrás no critério de números, pois são cerca de 15 mil espécies descritas (Rosa et al., 2018), onde destas, 650 são termitófilas (Moreira et al., 2019).
O primeiro registro de outros animais vivendo em associação com cupins, foi realizado pelo entomólogo dinamarquês Jørgen Matthias Christian Schiødte, em 1853. Os curiosos besouros estudados por Schiødte foram classificados na família Staphylinidae, e coletados em ninhos de cupins da espécie Constrictotermes cyphergaster. Tratavam-se de três espécies inéditas para a ciência, sendo uma espécie do gênero descrito como Spirachta e duas espécies do gênero Corotoca (Schiødte, 1853; 1854; 1856). A forma atípica do abdômen desses besouros, sem dúvidas, foi o que mais chamou a atenção do Schiødte, ao constatar que os indivíduos do gênero Corotoca apresentavam outro fenômeno intrigante: a viviparidade (Schiødte, 1853; 1854; 1856).
A complexidade dos termitófilos
A associação entre termitófilos e cupins é datada desde o Cretáceo médio (mais ou menos 99 milhões de anos atrás), e consequentemente, os termitófilos tornaram-se cada vez mais especializados nesse estilo de vida (Cai et al., 2017; Eloi et al., 2021). Pense comigo: quanto mais tempo você passa na casa de um anfitrião, melhor você conhece cada canto e cada truque da casa (Quem nunca lidou com aquela porta que só abre de um jeitinho específico?). Em especial, duas morfologias surgiram várias vezes, também de forma independente, em várias linhagens: Limulóides – besouros em formato de ‘gota’, esse nome inclusive é uma menção ao caranguejo-ferradura (Limulus polyphemus), por conta do seu bauplan – e fisogástricos, que apresentam uma espécie de inchaço nas partes mais membranosas do abdômen, resultando em um grande alargamento corporal (Figuras 1A-1B).
No geral, ainda não se sabe muito bem a função que a fisogastria apresenta (Zilberman et al., 2019a). Alguns estudos, no entanto, buscam entender as vantagens que essa morfologia pode conferir aos termitófilos (sem dúvidas existe alguma coisa!). Por exemplo, a ideia de que a fisogastria confere uma certa camuflagem aos termitófilos, há muito tempo é discutida. Cristaldo et al., (2012) discute que o formato limulóide tende a minimizar as interações com o cupim e maximizar as capacidades de ocultação das espécies invasoras, enquanto as formas fisogátricas maximizam as interações com os cupins e facilitam a integração social (ver também - Kanao et al., 2016).
Mas de fato, o disfarce pode ser tão convincente, que o próprio Richard Dawkins elencou esse fenômeno como “um dos maiores espetáculos de toda a história natural” (veja a Figura 2) (Dawkins, 1996). Mas, espera aí…os cupins são cegos, certo? Porquê, então, haveria por existir uma suposta camuflagem morfológica se nem mesmo os cupins conseguem discriminá-la? Talvez isso tenha levado Edward O. Wilson a questionar esse presumível mimetismo, alegando que ‘nem de longe [os termitófilos] lembram um cupim’ (Wilson, 1992).
A melhor explicação que temos hoje, é que esse disfarce pode ter surgido devido a uma pressão seletiva por parte de predadores visuais, isto é, predadores que possuem uma visão aguçada (Maruyama & Parker, 2017). Funcionaria mais ou menos assim: uma vez que o termitófilo estivesse em meio aos cupins, ele seria apenas ‘mais um’ no meio da multidão, passando despercebido e com menos chances de ser predado. Quer ter uma ideia como funciona? Veja a figura 3. Você como um predador visual e topo de cadeia, talvez ainda tenha dificuldades de encontrar o nosso camarada.
Esse presumível mimetismo morfológico fora observado na espécie Corotoca melantho (o mesmo descrito por Schiødte lá em 1853), por Cunha et al., (2015), que observou que esse termitófilo apresentava uma congruência morfológica com as operárias de seu hospedeiro Constrictotermes cyphergaster (Silvestri, 1903), atribuindo-o como parte do mecanismo necessário para a vida em uma colônia social.
E se eu te disser que os termitófilos cheiram tão bem quanto os cupins? Calma, não estou falando que eles usam algum tipo de perfume chique, mas que, na verdade, são capazes de sintetizar o perfil químico dos seus hospedeiros. Lembra que mencionamos que cupins são cegos? Mas isso não quer dizer que eles não percebem o ambiente ao seu redor (até vibrações podem funcionar como sinais - veja Cristaldo et al., 2015). A grande maioria dos insetos eusociais vivem em um mundo cercado por pistas químicas, onde cada colônia tem um perfil químico próprio (Florane et al., 2004; Dronnet et al., 2006), que auxilia na comunicação e no reconhecimento dos seus companheiros de ninho (Queller & Strassman, 2002). Esse perfil químico é composto principalmente por hidrocarbonetos cuticulares (CHCs), e curiosamente, alguns termitófilos apresentam CHCs bem semelhantes ao de seus hospedeiros (Howard et al., 1980), como fora demonstrado por Rosa et al., (2018).
Rosa et al., (2018) identificou que C. melantho apresenta um perfil químico tão parecido com o de seu hospedeiro, que os cupins não são capazes de reconhecê-lo como um intruso, tratando o termitófilo tão bem quanto um verdadeiro membro da colônia. Isso é tão interessante, que os autores foram além da semelhança química entre indivíduos da mesma colônia, e também encontraram que C. melantho apresenta CHCs mais parecidos com seus hospedeiros cupins do que com outros besouros de outras colônias. Em outras palavras, C. melantho pode ser capaz de sintetizar o perfil químico específico de sua colônia hospedeira.
E como se alimentariam? Apesar de não ser conhecido em totalidade, as espécies de Corotocini possuem um aparelho bucal modificado de forma a sugerir uma dieta líquida, isso é observado na redução das partes bucais em espécies do gênero Corotoca. Seevers (1957) hipotetizou que esses termitófilos seriam alimentados por térmitas por trofalaxia, ou seja, troca de nutrientes, simbiontes intestinais e substâncias imunológicas por alimentação estomodeal e proctodeal (Pisno et al., 2019). Mas outros comportamentos associados também podem ocorrer, como o allogrooming, que consiste na remoção de manchas cuticulares e patógenos, que ocorre na limpeza de uns aos outros (Mitaka & Akino, 2021). Esses dois comportamentos propiciariam não só a alimentação, mas também condições higiênicas (Cunha et al., 2015; Pisno et al., 2019).
A trilha de maternidade em Corotoca
Antes de explicar um pouco do nosso trabalho realizado em 2018 com espécimes do gênero Corotoca (Oliveira et al., 2018), deixem-nos lhes contar um pouco do contexto em que estávamos inseridos. Talvez o principal fator, fora o conhecimento de outros eventos no contexto de parasitismo social que nos levaram a investigar um pouco mais da relação entre cupins e termitófilos. Alguns trabalhos foram importantíssimos para a elaboração de hipóteses futuras e como investigamos essa relação: 1) Schiødte (1853) realiza a descrição original; em seguida o autor realiza redescrições em 1854 e 1856 (de formas adultas, com ilustrações dos imaturos); 2) Reichensperger (1936) registra uma imagem de uma larva saindo parcialmente de uma fêmea de C. melantho; 3) Seevers (1957) realiza uma redescrição, e propõe que as larvas de C. melantho eram depositadas já em estágio avançado de desenvolvimento e logo viravam pupas, o que explicaria o porque as larvas não seriam encontradas nos ninhos de cupins; 4) Fontes (1977) publicava suas comparações entre C. phylo e com C. fontesi.
Vejam também esse exemplo: larvas de uma borboleta da espécie Phengaris rebeli (Hirschke, 1904), passam os estágios iniciais de sua vida alimentando-se de material vegetal em sua planta hospedeira, e após passar por seus três instares larvais, caem no solo. Acontece que esse momento coincide exatamente com a atividade de formigas do gênero Myrmica Latreille. As formigas então encontram essas larvas, e as carregam para o interior de seus ninhos, tratando-as como se fossem suas próprias larvas de formigas (Akino et al., 1999). Como se não fosse o bastante, as larvas de Phengaris possuem tamanho corporal e CHCs semelhantes aos de sua hospedeira. Um parasitismo social, em que os benefícios estão associados ao cuidado pelo hospedeiro e a utilização dos recursos (Schmid-Hempel, 1998).
Por fim, sabendo que alguns inquilinos de colônias sociais possuem o seu período de reprodução/dispersão quase que sincronizado com período de forrageio de seus hospedeiros, o trabalho desenvolvido pelo Laboratório de Ecologia de Térmitas (LET) da Universidade Estadual da Paraíba buscou investigar o comportamento de besouros de C. melantho, os quais já haviam sido vistos trilhas de forrageamento de C. cyphergaster (Oliveira et al., 2018).
Logo após o estabelecimento da trilha de forrageio dos cupins (isto é, um fluxo intenso de operários saindo do ninho), composta principalmente por operários em busca de alimento, era possível ver alguns besouros (sempre fêmeas!) acompanhando o fluxo até certo ponto da trilha. Após um deslocamento de cerca de 50 cm, as fêmeas de Corotoca pararam de repente e então viraram-se, ficando de frente para aquele grande fluxo de operários que as ultrapassaram. Os besouros então foram vistos realizando o parto de suas larvas e as depositando na cabeça dos operários de cupins (Oliveira et al., 2018).
Como isso acontece? Cada fêmea de
Corotoca pode carregar até três ovos cheios de vitelo que nutrem o embrião (Zilberman et al. 2019). Cada embrião possui desenvolvimento independente, de modo que aqueles mais desenvolvidos, logo se tornarão larvas e estarão localizados no ápice do abdômen das fêmeas (Figura 4) (veja também o registro de Reichensperger em 1936!). As fêmeas
Corotoca somente aparecem na trilha quando “é chegada a hora”. A larva então é expelida de seu abdômen, saindo de ponta-cabeça (às vezes não), e ficando pendurada na ponta do abdômen da sua progenitora (figura 5). A mamãe
Corotoca então, começa a tocar com a larva cada um dos cupins que passa por ela, de maneira a tentar fixar sua prole no operário (veja o vídeo abaixo).
conservação da biodiversidade