2. “Eu vi a Terra! Ela é tão bonita.”
O primeiro ser humano a ver a Terra como uma esfera gigantesca foi o cosmonauta soviético Yuri [Alekseyevich] Gagarin (1934-1968).
Em 12/4/1961, a bordo da espaçonave Vostok 1 e orbitando a Terra a uma altitude média de 322 km [nota 6], Gagarin deu uma única volta em torno do planeta.
O voo durou tão somente 108 minutos [nota 7], mas foi o suficiente para transformar o episódio em um feito épico e histórico.
Enquanto orbitava, além de pronunciar um ‘discurso oficial’ endereçado à humanidade como um todo, Gagarin disse aos colegas soviéticos: “Eu vejo a Terra! Ela é tão bonita” [nota 8].
3. Esferoide oblato.
Ocorre que a Terra não é perfeitamente esférica. Medições rigorosas indicam que o raio equatorial (6.378 km) é ligeiramente maior que o raio polar (6.357 km) [nota 9]. Diz-se então que o globo terrestre é um esferoide – i.e., um objeto aproximadamente esférico.
Esse desvio talvez fosse uma surpresa para os gregos, mas não para quem o previu e explicou: o matemático e naturalista inglês Isaac Newton (1643-1727) [nota 10].
Nas palavras de Nussenzveig (2013, p. 249):
Newton calculou o efeito da rotação da Terra sobre sua forma: na ausência de rotação, ou seja, somente sob o efeito a gravidade, os planetas deveriam ter forma esférica; entretanto, as ‘forças centrífugas’ produzidas pela rotação levam a um achatamento nos polos e alargamento no equador, conduzindo a uma forma de esferoide oblato [...] [nota 11].
Segundo o cálculo de Newton, o diâmetro polar da Terra deve estar para o equatorial como 229/230, levando a uma elipticidade de 1/230 [nota 12].
4. A gravidade e a forma dos corpos celestes.
Mas, afinal, por que a Terra, o Sol, a Lua e tantos outros corpos celestes são esféricos?
A resposta tem a ver com o seguinte: todo e qualquer objeto astronômico cujo diâmetro esteja acima de um determinado valor mínimo tende a se tornar esférico pelo simples motivo de que a sua forma passa a ser moldada pela gravidade.
Nas palavras de Luminet (1996, p. 53-4):
A Terra é efetivamente quase esférica porque é um objeto astronômico e, como tal, sua forma é governada pela gravitação. Em termos muito gerais, todas as formas no universo são governadas pelas quatro forças fundamentais. Entre essas formas fundamentais, há duas interações nucleares que regem a estrutura dos núcleos atômicos – ainda que não seja esse o nosso propósito hoje – o eletromagnetismo e a gravidade.
Um bom exemplo de corpos bastante maciços, mas não a ponto de impedir que, ao mesmo tempo, atuem as forças eletromagnéticas e as forças gravitacionais, é o dos asteroides e dos núcleos de cometas. Esses objetos podem ter entre alguns quilômetros e algumas centenas de quilômetros de diâmetro e têm formas completamente bizarras, tão variadas quanto as dos seixos que encontramos em uma praia: não têm uma forma esférica, porque não são esculpidos pela gravitação. De fato, pode-se demonstrar que a gravitação só se torna a força organizadora dominante a partir de corpos que têm diâmetros da ordem de 500 quilômetros. É a razão pela qual todos os corpos do sistema solar, de mais de 500 quilômetros de diâmetro – quer dizer, todos os planetas e a maioria dos satélites dos planetas – têm formas esféricas. Por quê? Porque é a própria natureza da gravitação que o impõe. A força de gravitação atrai cada partícula material de um corpo para o que chamamos de centro de massa (ou centro de gravidade) do corpo [nota 13]. Ela age da mesma maneira em todas as direções, com uma intensidade que depende apenas da massa das partículas e de sua distância do centro. Então, se um corpo é homogêneo, a gravitação o ‘esculpe’ inevitavelmente segundo uma forma esférica. Isso vale para os planetas e a fortiori para as estrelas, que são bem mais maciças.”
5. Coda.
Em resumo: (1) A Terra é esférica porque é um objeto astronômico suficientemente grande (> 500 km de diâmetro), a ponto de ter a sua forma governada pela gravidade. Ao se tornar a força dominante, a gravidade tende a fazer com que os corpos celestes assumam uma forma esférica. (2) Mas a Terra não é uma esfera perfeita. O desvio (imperceptível em uma fotografia – ver a figura que acompanha este artigo) é resultado do movimento de rotação do planeta. Gerada por tal movimento, a força centrífuga tende a fazer com que o acúmulo de matéria seja um pouco maior ao longo do eixo equatorial do planeta.
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Notas.
[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de conclusão; título provisório). Há uma campanha de comercialização em curso envolvendo os quatro livros anteriores do autor – para detalhes, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.
[1] Bola ou Bolinha de Gude Azul (ing., The Blue Marble) foi como ficou conhecida uma das primeiras imagens coloridas da Terra. Datada de 7/12/1972, a fotografia foi tirada pelo geólogo e astronauta estadunidense Harrison [Hagan] Schmitt (nascido em 1935). (Há uma imagem fotográfica anterior, datada de 1967. Mas foi tirada por um satélite e é relativamente pouco conhecida – ver aqui.) Schmitt foi um dos três integrantes da Apollo 17 (7-19/12/1972), a última missão tripulada a pousar na Lua.
[2] O restante da superfície terrestre (29%) exibe outras colorações, sobretudo tons esverdeados (florestas fechadas), amarronzados (desertos, áreas desflorestadas ou de vegetação rarefeita) ou esbranquiçados (calotas polares e topos de montanhas, ameaçados hoje por um acelerado processo de derretimento). Uma combinação de propriedades físicas e químicas dá à água dos oceanos a sua coloração azulada – ver Garrison (2010).
[3] Sobre a relevância histórica da obra de Eratóstenes, ver Ronan (1987) e Boyer & Merzbach (2012).
[4] Na Grécia Antiga, estádio era a distância padrão (185 m) em que eram disputadas as corridas. O resultado obtido por Eratóstenes (46.250 km) é uma ligeira superestimativa do valor adotado hoje para a circunferência equatorial do planeta. Vejamos. O comprimento da circunferência (C) mede 2πr, onde π é uma constante e r é o raio. Fazendo π = 3,14 e r = 6,378 x 106 m (ver nota 8), obtemos C = 4,0054 x 107 m (ou 40.054 km), o equivalente a 87% do valor obtido pelo filósofo grego.
[5] Assim como os gregos, os navegadores europeus que chegaram ao Novo Mundo, como Cristóvão Colombo (1451-1506) e Pedro Álvares Cabral (1467-1520), estavam cientes de que vivemos em um planeta esférico. Nas palavras de Boorstin (1989, p. 214): “Nessa altura [1484], os europeus instruídos já não tinham nenhuma dúvida quanto à esfericidade do planeta”. O desacordo residia no valor das dimensões. O modelo de globo terrestre adotado por Colombo, por exemplo, era significativamente menor que o previsto pelos cálculos de Eratóstenes. Razão pela qual a sua viagem ao Novo Mundo demorou mais do que o previsto.
[6] Orbitando tão perto do planeta, Gagarin não chegou a ver a Terra como uma bolinha de gude azul. Quando Schmitt tirou a sua famosa fotografia (ver nota 1), a Apollo 17 estava a cerca de 45 mil km de distância da Terra. À medida que nos afastamos ainda mais, a imagem do planeta muda e evoca outras analogias e metáforas. No início de fevereiro de 1990, por exemplo, a sonda espacial Voyager I (lançada em 5/9/1977) estava a cerca de 6 bilhões km da Terra. E seguia se afastando para fora do Sistema Solar. A essa distância, o nosso planeta é praticamente imperceptível em uma imagem fotográfica – torna-se um cisco em meio a um pano de fundo polvilhado por inúmeros outros ciscos ou um pálido ponto azul (ing., pale blue dot), para usar a expressão literária adotada por Sagan (1996).
[7] Para uma recriação em tempo real do voo de Gagarin, incluindo imagens e trechos do áudio original, ver o filme First orbit (2011), de Christopher Riley.
[8] Para detalhes, ver aqui e aqui.
[9] Raio equatorial: ~6,37814 x 106 m (Luzum et al. 2011). A velocidade de rotação atual da Terra é de 1.670 km/h. Em 24 horas, portanto, um ponto fixo sobre o equador descreve uma circunferência de 40.080 km de comprimento (= 24 h x 1.670 km/h). Vale ressaltar que à medida que a rotação diminui, o comprimento do dia aumenta – para detalhes, ver Comins & Kaufmann (2010). A velocidade de rotação já foi maior, o que implica dizer que o comprimento do dia terrestre já foi menor do que é hoje. Estima-se que o dia esteja a ganhar 1,8 ms (milésimo de segundo) a cada século (Stephenson et al. 2016).
[10] Para uma discussão sobre os anos de nascimento e morte de Newton, ver Christie (2015).
[11] Esferoide oblato é aquele cujo eixo equatorial é maior que o eixo polar. Quando o eixo polar é maior, diz-se que o esferoide é prolato.
[12] Ainda Nussenzveig (2013, p. 249): “As determinações experimentais mais recentes dão uma elipticidade de ≈1/297.”
[13] Para detalhes técnicos, ver Comins & Kaufmann (2010) e Nussenzveig (2013).
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Referências citadas.
+ Boorstin, DJ. 1989 [1983]. Os descobridores. RJ, Civilização.
+ Boyer, CB & Merzbach, UC. 2012 [2011]. História da matemática, 3ª ed. SP, Blucher.
+ Comins, NF & Kaufmann, WJ, III. 2010 [2008]. Descobrindo o Universo, 8ª ed. Porto Alegre, Bookman.
+ Christie, T. 2015. Calendrical confusion or just when did Newton die? The Renaissance Mathematicus, em 20/3/2015. [O blogue do autor está aqui.]
+ Garrison, T. 2010 [2006]. Fundamentos de oceanografia, 4ª ed. SP, Cengage.
+ Luzum, B & mais 11. 2011. The IAU 2009 system of astronomical constants: the report of the IAU working group on numerical standards for Fundamental Astronomy. Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy 100: 293-304.
+ Nussenzveig, HM. 2013. Curso de física básica, v. 1: Mecânica, 5ª ed. SP, Blucher.
+ Ronan, CA. 1987 [1983]. História ilustrada da ciência, v. 1: Das origens à Grécia. RJ, J Zahar.
+ Sagan, C. 1996 [1994]. Pálido ponto azul. SP, Companhia das Letras.
+ Singh, S. 2006 [2004]. Big Bang. RJ, Record.
+ Stephenson FR; Morrison LV & Hohenkerk CY. 2016. Measurement of the Earth’s rotation: 720 BC to AD 2015. Proceedings of the Royal Society A 472: 20160404 (http://dx.doi.org/10.1098/rspa.2016.0404).
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conservação da biodiversidade